
O machismo é um comportamento que, infelizmente, está presente em várias esferas da sociedade, um dos tentáculos mais enraizados está no universo nerd e geek, diversas mulheres foram e ainda são colocadas em posição de constrangimento para provar o valor da sua carteirinha nerd.
No mundo dos jogos online esse tipo de comportamento alcançou níveis surpreendentes, ataques machistas, misóginos e preconceituosos foram o estopim para fazer com que as produtoras de jogos começassem a monitorar seus servidores e punir jogadores que passam dos limites.
Mas, e quando o ambiente de jogo é físico?

Um grupo de pessoas se reúne para jogar RPG, um dos integrantes anuncia uma novidade na mesa: a entrada de uma Jogadora. Além de enfrentar perigos fantásticos, a nossa Jogadora se depara com um monstro mais real e comum: o machismo.
Como lidar com situações como essa? O que podemos fazer para que mulheres se sintam mais confortáveis ao jogar RPG?
RESISTÊNCIA

Conversamos com Yara Cabral (Confraria RPG), Isa Gimenez (Biblioteca das Ancestrais) e Eveling Castro (Designer, RPGista e mãe-nerd), com participações especiais de Amedyr (Ilustradora, Artista de Jogos, RPgista e Streamer) e Pedro Lobato do podcast Overdrive.
Yara Cabral
Fui apresentada ao RPG quando tinha uns 13 anos, fui apresentada por meninos e por muitos anos joguei como única menina do grupo. Eu era inocente e há situações que hoje sei que eram machistas e misóginas, situações como eu não poder fazer personagens masculinos por eu ser a única menina. Também acontecia muito de me ser ‘‘indicada’’ fazer personagens de ‘‘apoio’’, nunca as personagens fortes, nunca as personagens que corriam para a batalha, até porque eles sempre brigavam para fazer esse tipo de personagem. Se eu fazia uma personagem com atributos físicos fortes, era constantemente desafiada a fazer algo melhor que eles e quando eu conseguia, davam todo tipo de desculpa para manter seus egos.
Casos pequenos como o fato de não ter praticamente nenhuma voz nas decisões, mesmo que minha personagem tivesse mais conhecimento sobre alguns assuntos, era sempre colocada de lado, fora as piadinhas sobre a aparência da personagem, sempre tentavam algo a mais com ela ou achavam que tinham mais liberdade comigo.
Uma das coisas que me chamou atenção no Casa Velha RPG foi justamente o exemplo do que pode ser feito para melhorar o ambiente do RPG: tratar com igualde. Vi mulheres com personagens masculinos, homens com personagens femininos, mulheres narrando, tratando o RPG como ele é para ser, uma interpretação de papéis, sem distinção de gênero com os players. Igualdade e respeito são requisitos para me sentir à vontade em algum ambiente.
Isa Gimenez
Meu nome é Isabella Gimenez e eu sou a criadora e idealizadora da Biblioteca das Ancestrais, eu estou no meio do RPG há quase 20 anos, tendo passado por clássicos de texto como e-mail, MSN, Skype, até a rolagem de dados e mesas presenciais.
O meu projeto é uma forma de militância para abrir mais as portas para as mulheres no mundo dos jogos, participando como player ou como mestra também. O meio geek é, sim, muito machista e fechado, não existem muitas conversas de safespace, e por incrível que pareça, mesmo em 2019 a discriminação ainda rola solta.
Tive muitas experiências ruins com o RPG, muitas vezes fui impedida de jogar (quando mais nova) pelo simples fato de que eu era uma menina e, na época, eu não contestei isso. Depois de algum tempo, as coisas começaram a ficar mais abertas.
Não entenda errado, ainda há muita segregação e machismo (descomunal, diga-se de passagem) no meio, mas eu sinto que hoje em dia existe uma parte da comunidade tentando abraçar mais as minorias e transformar o ambiente de jogo em algo seguro e divertido. Ainda temos muito o que caminhar, muitos direitos a conquistar, mas vejo que há, sim, uma abertura maior nisso.
Eveling Castro
Ambientes seguros são o meu objetivo desde que eu percebi que na mesa de RPG foi onde encontrei espaço para me expressar e fiz meus grandes amigos. Há muitos anos eu acredito que é papel de todos numa mesa cooperar para tornar aquele momento/jogo/encontro um lugar onde todos possam se expressar e criar juntos algo memorável, mesmo que só tenha significado para as pessoas envolvidas.
Como Narradora, minha missão sempre foi me colocar junto aos meus jogadores e ser honesta e transparente com eles, no intuito de promover entendimento e confiança entre todos. Não sei a resposta definitiva para tornar o RPG um lugar seguro para mulheres, mas posso dizer que vivo na busca por diálogo, compreensão e acolhimento, seja como Jogadora ou Narradora, principalmente enquanto pessoa. Jogar RPG é um ato social e, como tal, deve somar e nunca dividir
‘‘[…] Eu tenho uma sorte do caramba de conhecer pessoas que gostavam das mesmas coisas que eu e que não tiveram receio nenhum de me chamar para jogar RPG, eu era a única menina do grupo e eu não estava lá porque eu namorava alguém, eu não estava lá porque eu estava interessada em alguém, eu estava lá porque eu gostava das mesmas coisas que eles […] e os meus amigos tinham que ouvir constantemente, quando a gente encontrava outros grupos, por que que ela está jogando com vocês? […] eu conhecia as outras meninas que jogavam (RPG), é uma cidade enorme (Salvador), é uma metrópole, mas eu conheci as meninas porque eram pouquíssimas, quando isso aconteceu a gente se olhou, se uniu e disse ‘‘Quer saber? Vamos trazer mais meninas para o hobby’’ Eu passei de 1999 até 2004 com uma missão pessoal de colocar mais meninas para jogar, minhas mesas eram só com meninas ou mistas, eu mestrava online via e-mail porque eu queria que as meninas jogassem’’ – Overdrive #25 – Mulheres que jogam RPG.
Amedyr
‘‘[…] RPG é vida, entendeu? O RPG, ele meio que me salvou, assim, de ser uma introvertida, eu tinha muitos problemas para me soltar, sabe? Eu era muito presa em mim mesma, eu tinha muita vergonha de falar com as pessoas, aí quando eu comecei a jogar, eu comecei a ver que os amiguinhos que falavam mais e que interpretavam mais, ganhavam mais XP e o personagem deles ia avançando mais, aí eu pensei ‘‘eu preciso ganhar mais XP’’ (risadas), aí eu comecei a falar mais, a interagir mais, não precisei de psicólogo, o RPG que me salvou (risadas)’’ – Overdrive #25 – Mulheres que jogam RPG.
ROLE INICIATIVA

‘‘Engraçado porque eu só jogo com personagem mulher já tem um ano e meio, mais ou menos, a partir de agora eu quero me desafiar como jogador e desafiar as mesas que eu jogo, porque é legal você colocar um tipo de experiência diferente, um tipo de dialogo diferente dentro da mesa, uma forma de visão diferente e se colocar de uma maneira diferente’’ – Pedro Lobato Overdrive #25 – Mulheres que jogam RPG.
Por décadas, o RPG foi – eu disse FOI – um hobby masculino, sendo restrita a entrada de meninas, salvando-se as exceções, mas o novo mundo trouxe novas perspectivas e novas ações para lutar contra esse tipo de comportamento, houveram e sempre vão haver pessoas que irão transformar brincadeiras de meninos e brincadeiras de meninas em, simplesmente, brincadeiras, sem distinção.
‘‘Para mim, RPG é dialogo […] o machismo não é apenas do cara contra a menina, ele não é apenas da pessoa que é ignorante contra uma pessoa mais instruída ou mais vulnerável, o machismo também se coloca numa forma de autodefesa que o cara é sempre mal, não, gente, calma, eles também são vítimas, eles também sofrem, vamos dialogar antes de atacar o coleguinha’’ – Eveling Castro, Overdrive #25 – Mulheres que jogam RPG.
Nós, homens, nunca sentimos esse tipo de exclusão. Para alguns de nós ainda é difícil aprender, mudar, rever conceitos e reconhecer que o outro sexo também quer se divertir, também quer XP, também quer fazer uma personagem mulher forte o bastante para dar hitkill no vilão.
Os coletivos de mulheres que jogam RPG são importantíssimos quando falamos sobre oferecer espaços seguros e iguais para iniciantes e veteranas nas rolagens de dados, é importante também que nós, homens, saibamos construir esses espaços seguros e saudáveis para abrigar todos e todas em um ambiente que, acima de tudo, prega o amor e o respeito entre todos e todas.
1 Comment
Esses depoimentos são maravilhosos, aliás serão de grande ajuda para mim e meus colegas nas mesas de RPG sejam online ou presenciais. 😊